07-09-2021 16:54
Vamos para essa casa iluminada sem candeia
O fascínio pela condição humana motivou-me a cursar Psicologia. São dignas de estudo as demonstrações de versatilidade em situações inéditas, de resiliência em situações limite, de adaptação em situações irremediáveis; os mecanismos de defesa perante a dor, a indiferença, o remorso ou a culpa; o grau de perversidade que a imaginação alcança; as relações onde nos revelamos; sobretudo, os esforços quotidianos por dar sentido à grandeza que nos cerca sem razão aparente. Com a pandemia ainda viva mas mostrando sinais de trégua, permito-me reflectir sobre esta tendência, que a História assinala periodicamente, para, seja qual for o abalo, querer recomeçar.
O labor de milénios, com seus avanços e regressões, permitiu-nos forjar um mundo de artifício, ainda que absolutamente essencial. Quando falamos de direitos humanos, de leis, de contratos, de educação, de política, de ciência, de economia, de indústria, ou melhor, quando falamos, porque a linguagem também é um artifício, referimo-nos a um universo que se origina e esgota na espécie humana, mesmo que as excedências dessas actividades comprometam a restante natureza. A par com os avanços tecnológicos, que na contemporaneidade atingem níveis de complexidade que nenhum deus grego, nos seus sonhos mais atrevidos, conceberia, tal redoma disfarça, cada vez melhor, a marca da nossa mortalidade: a medicina dobrou-nos a esperança média de vida, os computadores aboliram a ditadura da geografia, as redes sociais deram palco e audiência a qualquer apelo. Tal redoma apresenta-nos o mundo controlável, previsível, dominado: repare-se na proliferação das áreas científicas e o seu consequente sucesso. Ensimesmados nas nossas conquistas, confundimos a redoma com a realidade.
Todavia, de repente, o mundo é outra coisa. Altera as nossas agendas, estraga-nos os planos, permite a livre circulação dum vírus fatal. Afinal, as coisas escapam à nossa vontade. Este choque ao constatar a nossa pequenez perante um planeta prenhe de formas que nos desafiam compromete as narrativas que vínhamos erigindo, lentamente qual estalagmite, de que somos especiais, temos um propósito, cumprimos uma missão. O que se nos apresenta é a indiferença e o caos. Então, surge o medo visceral, o que está imprimido nos genes e que nasceu há milhões de anos. Então, a revolta, o pânico, o desespero, para alguns a desistência. Porque a ilusão que nos sustém caiu, o véu levantou-se e somos recordados que habitamos a incerteza, rodeados de conflitos, catástrofes naturais e pandemias. O rei vai nu. De facto, como o corroboram vários estudos, um crescimento generalizado de doenças mentais, mormente a depressão, uma pandemia menos silenciosa, igualmente nociva, verificou-se. À parte outros factores de igual ou superior importância (estatuto socioeconómico, antecedentes, luto, emprego, violências, etc), é possível que o carácter imprevisível do quotidiano tenha para isso contribuído.
Mas a empreitada do ser humano é a de cobrir a fragilidade e esconder a mortalidade. É demasiado doloroso encarar o paradoxo – e a ironia – de sermos capazes de pensar a eternidade e o infinito presos num corpo biológico com prazo. Por isso, uma e outra e outra vez, recomeçamos. E estou curioso quanto ao recomeço. Agora que vamos limpando as cinzas da queimada para nova sementeira, quero muito saber o que nos espera. Porque, ciclicamente, a Natureza relembra-nos que o saquinho de superioridade onde nos enfiámos gasta-se e rompe-se. Caem impérios, catedrais, muros, Golias e o Titanic. Contudo, levantam-se outras coisas. Eis a mais fascinante, ambígua, agridoce característica humana: a insolente teimosia. Para o bem e para o mal, de novo nos organizaremos, de novo criaremos ferramentas e, de novo, partiremos em direcção ao futuro. Em que moldes? Não sei. Por isso, diria Lídia Jorge, que noite prodigiosa é o futuro!